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Incontornável

Crónica de Miguel Oliveira Panão, Professor na Universidade de Coimbra e Doutorado em Engenharia Mecânica pelo Instituto Superior Técnico. Membro do Movimento dos Focolares.



Era a primeira vez que fazia escalada. Como qualquer jovem, não estava bem ciente dos riscos quando entusiasmado comecei a escalar a parede da Amizade em Sintra sem corda, ou seja, a solo. Depois de um primeiro troço apercebi-me que descer era mais perigoso do que continuar a subir. O caminho a seguir tinha-se tornado incontornável. É assim que encaro o processo da sinodalidade: incontornável.

A partir do momento em que o papa Francisco abriu toda a Igreja a um diálogo aberto com o mundo contemporâneo, enfrentar o sentir daqueles que estão dentro, fora, ou afastados, é uma oportunidade de dor e amadurecimento. Fez-me sempre impressão ouvir os juízos que algumas pessoas faziam dos ensinamentos e vivência católicas quando pouco ou mal conheciam e viviam esses ensinamentos. A sua visão distorcida da realidade leva-me a ter dificuldade em os ouvir até ao fim sem rebater. Mas este é o risco que o papa nos convida a viver com a sinodalidade.

Não vamos gostar ou identificarmo-nos com muitas das coisas que ouviremos. Vontade não faltará em rebater, esclarecer e demonstrar como se faz. Mas caminharmos juntos e convidar os que estão nas periferias a fazer connosco este caminho implica uma escuta atenta, sincera e aberta dos olhares que estão de fora da Igreja. Pois, se não vêem o que eu vejo ou parece-me ver por dentro, significa que ao nosso testemunho falta alguma limpidez. O diálogo com o mundo é um caminho incontornável da sinodalidade, mas falarmos português com o mundo e esse responder em chinês, isto é, numa língua que sabemos muito pouco ou coisa nenhuma, leva, incontornavelmente, a dificuldades na comunicação. Para comunicar precisamos de uma linguagem que nos ajude a navegar pelos rápidos incontornáveis que podem levar-nos a uma queda de água ou à bacia que desagua no mar.

Pensar nos elementos que podemos desenvolver numa linguagem adequada ao diálogo sinodal levou-me a quatro: experiência; simplicidade, relação e pergunta.

Na unicidade de cada pessoa se justifica a diversidade de experiências. Partindo da comunhão como passo essencial do caminho sinodal, a comunhão de experiências é um elemento desta linguagem que procuramos. Nessa não há senão a escuta atenta sem juízo daquilo que o outro viveu ou está a viver. Cada experiência contém algo que Deus quer dizer a todos os que a escutam. Mas isso implica que a partilha da experiência não se inunde de detalhes, de tal modo que antes de chegar ao núcleo central, se realizaram vários contornos e quem nos escuta pode sentir-se perdido.

Navegar por uma rede social é simples, mas o algoritmo que permite essa simplicidade é muito complexo. Mas convém não confundir o que é complexo com o que é complicado. Quem complica dificulta a compreensão daquilo que quer dizer. O que é complexo implica um entrelaçar de relações, aspectos que desconhecemos e, por isso, custa-nos falar sobre eles, mas não quer dizer que seja difícil encontrar o modo de navegarmos pelo que é incerto. Daí que a exigência de simplicidade, por vezes, com um pensamento curto, mas profundo, nos ajude a penetrar o emaranhado incontornável que a partilha de experiências diferentes pode gerar.

Quando as palavras que conhecemos são diferentes daquelas que o outro conhece (português e chinês, por exemplo), a relação estabelecida através dos gestos mostram a existência de componentes silenciosos numa linguagem que todos possamos entender. Neste sentido, sempre que esses gestos tiverem origem no amor, dando espaço ao outro, agindo diante da sua necessidade por estarmos alerta e atentos, acabamos por desenvolver uma linguagem que não contendo qualquer raciocínio explícito pode abrir corações.

Por fim, se existe algo que compreendemos menos numa experiência, ou se uma determinada ideia parece-nos algo “complicada”, ou não conhecemos suficientemente bem a pessoa que temos diante de nós, perguntar é a arte de ir mais a fundo nos conteúdos do diálogo entre nós. — «Podias explicar um pouco melhor?», «Eu entendi (isto). Era o que querias dizer?», «O problema que referes é sério e importante, tens alguma ideia do caminho a seguir?» — Mas quando perguntamos, importa estarmos atentos ao tom de voz porque a pergunta que permite desenvolver uma linguagem diante de assuntos difíceis e incontornáveis, procura o que é profundo, não produzir um juízo ou avaliação do modo como o outro entende as coisas.

Agora que os grupos começam este incontornável percurso sinodal, muito se tem falado sobre o assunto e não podemos esconder o risco de começarmos a ficar fartos disso, antes sequer de começarmos o caminho. Será a sinodalidade mais uma moda para manter entretida a vida espiritual até 2023, e, depois do documento final, ficaremos à espera da próxima moda? Se assim fosse estaríamos a viver uma vida espiritual sem sentido.

Há caminhos que não percorremos por serem fáceis, mas difíceis. A linguagem sinodal para enfrentar o que é incontornável está ainda por definir. Não sabemos muita coisa ou deveríamos perder tudo o que pensamos saber. No total desapego pode ser que Deus encontre o espaço para se fazer, também, ouvir. Sabemos que a Sua voz não é incontornável, mas possamos descobri-la como insubstituível.

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